Nº207 MOTOCICLISMO Julho 2008
Uma vida inteira de dedicação às motos antigas (especialmente as inglesas) foi o mote para uma conversa com José Ferreira, o conhecido coleccionador e requisitado especialista técnico da zona de Sintra.
O gosto, esse, veio-lhe quase desde o berço, quando via o seu pai sair de casa de motorizada. Porém, a necessidade cedo o obrigou a aguçar o engenho e a arte para conseguir remediar os percalços que o seu primeiro ciclomotor lhe reservava – uma Zundapp de 1961. Anos depois, já a trabalhar, chegou-lhe às mãos uma V5. Mais tarde, tirou a carta de condução e quando saiu da tropa adquiriu a sua primeira “bifa”: uma Royal Enfield 250. Hoje, lembrar-se de todas as motos que já teve é um autêntico desafio para a memória. Começaram por ser meros meios de transporte, contudo, posteriormente, a dedicação à causa apurou-se e com ela surgiu a colecção e a competição. Não foi só de recordações que falámos hoje – mas também. Pelo meio ferrou-se a brasa do descontentamento nos olhos do presente e atreveram-se alguns palpites e sugestões para o futuro.
MOTOCICLISMO: Foi lhe complicado aprender este ofício?
José Ferreira: Na verdade, quando comecei a reparar as minhas motos, sempre tive pessoas que me explicavam como fazer as coisas. Isso é importantíssimo. Depois, como não tinha dinheiro para pô-las na oficina, não tinha outro remédio se não desenrascar-me.
M: Havia algum “guru” em especial?
JF: Para mim, o Manelito da Quinta do Conde é o maior mago das motos antigas. Se há pessoas que nasceram para isto, ele é uma delas com certeza. É uma pessoa que não nega ajuda a ninguém, é muito prestável. Até o João Santos da Suzuki foi “pupilo” dele. Ele formou vários mecânicos que estão hoje aí.
M: É preciso ser-se abonado financeiramente para se ser proprietário de uma clássica?
JF: Nos carros talvez, mas nas motos não. Há de tudo e para todas as bolsas. Acontece é que, por vezes, há trabalhos que financeiramente não compensam como investimento, porque pode-se ir buscar uma moto lá fora exactamente igual, já recuperada, e mais barata. Nesses casos, às vezes, o valor estimativo (por se tratarem de motos de família) suplanta o valor de mercado, e por isso se ouvem falar de restauros muito onerosos.
M: As peças que usa são compradas novas ou são recuperadas de motos desmanteladas?
JF: Havendo novo à venda é preferível. As usadas só como último recurso, e mesmo assim não convém que sejam para componentes mecânicos vitais ao funcionamento da moto.
M: Nos seus restauros tenta ir para além do original, melhorando-o?
JF: Aliás, às vezes nem dá para saber ao certo como era o original. Há modelos Norton da mesma série que vêm com pormenores diferentes umas das outras. Por isso, sempre que possível tento encontrar a solução que melhor se adequa ao modelo e à utilização a dar. Por exemplo: tento manter os parafusos originais nos apertos ao quadro, mas todos os outros substituo por parafusos em inox. Não enferrujam e dão um aspecto mais limpinho à máquina.
M: Que motos clássicas mais se vêem por aí a circular?
JF: As Norton 500 S2, monocilíndricas, as 88, as AJS e as Matchless.
M: Onde reside o encanto das inglesas?
JF: Os ingleses construíram muitas motos. Tinham muitas marcas, muita produção. Logo, acabaram por vender bastante, o que ajudou a disseminar esta atracção nostálgica. Depois, para a época, eram até bastante engenhosos. Chegaram a produzir motos nos anos 20 com travagem combinada. Os italianos, também têm o seu lugar na história, pela tecnologia que aplicavam, mas como eram menos fabricantes, venderam em menor quantidade. Depois, havia aquele mito de que as italianas partiam o motor com mais facilidade quando chegavam ao redline. Assim, apesar de as inglesas pingarem óleo, as pessoas preferiam uma inglesa, até porque era mais fácil mandá-las vir para Portugal, pois havia muita oferta. As BMW eram muito rigorosas mecanicamente, mas transmitiam menor emoção a quem as conduzia. Creio que o encanto reside nesta conjugação de factores.
M: Qual é a sua preferência pessoal?
JF: São as Triumph, pelas garantias mecânicas que sempre demonstraram face à concorrência.
M: Que principais dificuldades encontra no dia-a-dia da restauração?
JF: A qualidade de alguns materiais, mesmo daqueles que se mandam vir de Inglaterra. Com a globalização muita produção foi mobilizada para o Oriente à conta da mão-de-obra barata. Acontece que o rigor passou a ser bastante sofrível. Dou-lhe exemplos: farolins que não aconchegam, interruptores que não comutam, etc. As cromagens nacionais bem feitas são, também, cada vez mais difíceis de encontrar.
M: O tempo de espera pelo material é demorado?
JF: Entre uma semana a quatro meses.
M: Houve até agora algum restauro que lhe pusesse os nervos em franja pela dificuldade?
JF: Não. A Norton Internacional do João Paulo Fragoso foi complicada. O material de chapa foi difícil de encontrar, e a mecânica também tem que se lhe diga, mas com calma lá se conseguiu. Sei agora de uma em que o indivíduo teve de mandar fazer a árvore-de-cames em Inglaterra. Lá está, para as Triumph é mais fácil obter material genuíno. Nos trabalhos mais difíceis conto também com a ajuda do Luís Teixeira, e da literatura que fui adquirindo.
M: Que opinião tem acerca das futuras inspecções das motos?
JF: Neste país quando é para sacar dinheiro, os governantes avançam logo. E quando não são eles a lucrar, alguém o há-de fazer. Senão, veja-se o exemplo dos automóveis: a gente cruza-se todos os dias na estrada com carros que de certeza absoluta nunca passaram por uma inspecção, no entanto eles estão aí e com os documentos em dia. Nestas motos antigas, a maior parte delas reconstruídas, ou as coisas se fazem com real conhecimento da matéria, ou então vão é arranjar maneira de metade delas serem encostadas, e as outras, para andarem legais, terão de passar na tal inspecção sabe-se lá como…
M: Na sua opinião, quais deveriam ser as prioridades da FNM para o dossiê clássicas?
JF: Há dois anos, numa reunião da FNM, o Campos Costa teve uma ideia que a meu ver seria bastante louvável: era a criação de um núcleo para a protecção e salvaguarda das motos antigas enquanto património. Em muitos países as motos antigas são consideradas património de interesse público. Aqui em Portugal, se alguém quiser legalizar um veículo desses comprado no estrangeiro, os entraves burocráticos e técnicos são os mesmos como se fosse um veículo moderno. Já me aconteceu ir a uma inspecção de ruído para atribuir a matrícula a uma moto de 1954, e os parâmetros de avaliação serem os mesmos, como se fosse uma moto actual, construída com toda a tecnologia que hoje conhecemos. Claro que os barulhos internos do motor (que são normais naquela moto) excediam o limite permitido, apesar de os escapes estarem abafadíssimos. O mais absurdo é que nesse dia estava lá um indivíduo com uma BMW de 1936, com três velocidades, e foi-lhe exigido (tal como a todos os outros) que num dado espaço acelerasse em segunda até aos 60km/h. É caricato! Nem sei se essa moto em terceira, a descer, e com o vento por trás, alguma vez conseguiria chegar aos 60km/h… Bom, daí que a ideia do Campos Costa, para proteger este espólio, tenha sido muito bem acolhida no seio da comunidade. Na verdade, estas motos antigas são autênticas peças de arte. Logo se vê como vai ficar.
M: Que outras boas práticas poderiam ser implementadas no nosso país?
JF: Às vezes há motos a apodrecer em palheiros, com os documentos em nome de alguém que já não se sabe quem é ou, simplesmente, sem qualquer documentação. Em Espanha, por exemplo, consegue-se registar uma moto dessas. É-lhe atribuída uma matrícula de transição pelo período de um ano, findo o qual, não havendo reclamações, passa a definitiva.
M: Que modelos actuais poderão ser clássicos daqui a uma vintena de anos?
JF: A primeira condição é a de serem sucessos comerciais, depois têm de ter uma certa mística. A Yamaha R1 tem condições, a Honda CBR 1000 também, bem como a Suzuki GSXR 1000. Depois, poderemos ter nas naked a Speed Triple como eventual candidata. Uma scooter cinquentinha que poderá vingar como clássica é a Target da Yamaha. Não passaram ainda muitos anos por ela, mas já deixou saudades. Dentro das cruiser, eu diria que qualquer Harley-Davidson será um clássico. Aceito que os japoneses façam motos tecnicamente melhores, mais fiáveis, mais bonitas e mais baratas neste segmento, mas a Harley-Davidson é a original, e essa é uma herança que vale muito. O resto será sempre uma imitação.
O gosto, esse, veio-lhe quase desde o berço, quando via o seu pai sair de casa de motorizada. Porém, a necessidade cedo o obrigou a aguçar o engenho e a arte para conseguir remediar os percalços que o seu primeiro ciclomotor lhe reservava – uma Zundapp de 1961. Anos depois, já a trabalhar, chegou-lhe às mãos uma V5. Mais tarde, tirou a carta de condução e quando saiu da tropa adquiriu a sua primeira “bifa”: uma Royal Enfield 250. Hoje, lembrar-se de todas as motos que já teve é um autêntico desafio para a memória. Começaram por ser meros meios de transporte, contudo, posteriormente, a dedicação à causa apurou-se e com ela surgiu a colecção e a competição. Não foi só de recordações que falámos hoje – mas também. Pelo meio ferrou-se a brasa do descontentamento nos olhos do presente e atreveram-se alguns palpites e sugestões para o futuro.
MOTOCICLISMO: Foi lhe complicado aprender este ofício?
José Ferreira: Na verdade, quando comecei a reparar as minhas motos, sempre tive pessoas que me explicavam como fazer as coisas. Isso é importantíssimo. Depois, como não tinha dinheiro para pô-las na oficina, não tinha outro remédio se não desenrascar-me.
M: Havia algum “guru” em especial?
JF: Para mim, o Manelito da Quinta do Conde é o maior mago das motos antigas. Se há pessoas que nasceram para isto, ele é uma delas com certeza. É uma pessoa que não nega ajuda a ninguém, é muito prestável. Até o João Santos da Suzuki foi “pupilo” dele. Ele formou vários mecânicos que estão hoje aí.
M: É preciso ser-se abonado financeiramente para se ser proprietário de uma clássica?
JF: Nos carros talvez, mas nas motos não. Há de tudo e para todas as bolsas. Acontece é que, por vezes, há trabalhos que financeiramente não compensam como investimento, porque pode-se ir buscar uma moto lá fora exactamente igual, já recuperada, e mais barata. Nesses casos, às vezes, o valor estimativo (por se tratarem de motos de família) suplanta o valor de mercado, e por isso se ouvem falar de restauros muito onerosos.
M: As peças que usa são compradas novas ou são recuperadas de motos desmanteladas?
JF: Havendo novo à venda é preferível. As usadas só como último recurso, e mesmo assim não convém que sejam para componentes mecânicos vitais ao funcionamento da moto.
M: Nos seus restauros tenta ir para além do original, melhorando-o?
JF: Aliás, às vezes nem dá para saber ao certo como era o original. Há modelos Norton da mesma série que vêm com pormenores diferentes umas das outras. Por isso, sempre que possível tento encontrar a solução que melhor se adequa ao modelo e à utilização a dar. Por exemplo: tento manter os parafusos originais nos apertos ao quadro, mas todos os outros substituo por parafusos em inox. Não enferrujam e dão um aspecto mais limpinho à máquina.
M: Que motos clássicas mais se vêem por aí a circular?
JF: As Norton 500 S2, monocilíndricas, as 88, as AJS e as Matchless.
M: Onde reside o encanto das inglesas?
JF: Os ingleses construíram muitas motos. Tinham muitas marcas, muita produção. Logo, acabaram por vender bastante, o que ajudou a disseminar esta atracção nostálgica. Depois, para a época, eram até bastante engenhosos. Chegaram a produzir motos nos anos 20 com travagem combinada. Os italianos, também têm o seu lugar na história, pela tecnologia que aplicavam, mas como eram menos fabricantes, venderam em menor quantidade. Depois, havia aquele mito de que as italianas partiam o motor com mais facilidade quando chegavam ao redline. Assim, apesar de as inglesas pingarem óleo, as pessoas preferiam uma inglesa, até porque era mais fácil mandá-las vir para Portugal, pois havia muita oferta. As BMW eram muito rigorosas mecanicamente, mas transmitiam menor emoção a quem as conduzia. Creio que o encanto reside nesta conjugação de factores.
M: Qual é a sua preferência pessoal?
JF: São as Triumph, pelas garantias mecânicas que sempre demonstraram face à concorrência.
M: Que principais dificuldades encontra no dia-a-dia da restauração?
JF: A qualidade de alguns materiais, mesmo daqueles que se mandam vir de Inglaterra. Com a globalização muita produção foi mobilizada para o Oriente à conta da mão-de-obra barata. Acontece que o rigor passou a ser bastante sofrível. Dou-lhe exemplos: farolins que não aconchegam, interruptores que não comutam, etc. As cromagens nacionais bem feitas são, também, cada vez mais difíceis de encontrar.
M: O tempo de espera pelo material é demorado?
JF: Entre uma semana a quatro meses.
M: Houve até agora algum restauro que lhe pusesse os nervos em franja pela dificuldade?
JF: Não. A Norton Internacional do João Paulo Fragoso foi complicada. O material de chapa foi difícil de encontrar, e a mecânica também tem que se lhe diga, mas com calma lá se conseguiu. Sei agora de uma em que o indivíduo teve de mandar fazer a árvore-de-cames em Inglaterra. Lá está, para as Triumph é mais fácil obter material genuíno. Nos trabalhos mais difíceis conto também com a ajuda do Luís Teixeira, e da literatura que fui adquirindo.
M: Que opinião tem acerca das futuras inspecções das motos?
JF: Neste país quando é para sacar dinheiro, os governantes avançam logo. E quando não são eles a lucrar, alguém o há-de fazer. Senão, veja-se o exemplo dos automóveis: a gente cruza-se todos os dias na estrada com carros que de certeza absoluta nunca passaram por uma inspecção, no entanto eles estão aí e com os documentos em dia. Nestas motos antigas, a maior parte delas reconstruídas, ou as coisas se fazem com real conhecimento da matéria, ou então vão é arranjar maneira de metade delas serem encostadas, e as outras, para andarem legais, terão de passar na tal inspecção sabe-se lá como…
M: Na sua opinião, quais deveriam ser as prioridades da FNM para o dossiê clássicas?
JF: Há dois anos, numa reunião da FNM, o Campos Costa teve uma ideia que a meu ver seria bastante louvável: era a criação de um núcleo para a protecção e salvaguarda das motos antigas enquanto património. Em muitos países as motos antigas são consideradas património de interesse público. Aqui em Portugal, se alguém quiser legalizar um veículo desses comprado no estrangeiro, os entraves burocráticos e técnicos são os mesmos como se fosse um veículo moderno. Já me aconteceu ir a uma inspecção de ruído para atribuir a matrícula a uma moto de 1954, e os parâmetros de avaliação serem os mesmos, como se fosse uma moto actual, construída com toda a tecnologia que hoje conhecemos. Claro que os barulhos internos do motor (que são normais naquela moto) excediam o limite permitido, apesar de os escapes estarem abafadíssimos. O mais absurdo é que nesse dia estava lá um indivíduo com uma BMW de 1936, com três velocidades, e foi-lhe exigido (tal como a todos os outros) que num dado espaço acelerasse em segunda até aos 60km/h. É caricato! Nem sei se essa moto em terceira, a descer, e com o vento por trás, alguma vez conseguiria chegar aos 60km/h… Bom, daí que a ideia do Campos Costa, para proteger este espólio, tenha sido muito bem acolhida no seio da comunidade. Na verdade, estas motos antigas são autênticas peças de arte. Logo se vê como vai ficar.
M: Que outras boas práticas poderiam ser implementadas no nosso país?
JF: Às vezes há motos a apodrecer em palheiros, com os documentos em nome de alguém que já não se sabe quem é ou, simplesmente, sem qualquer documentação. Em Espanha, por exemplo, consegue-se registar uma moto dessas. É-lhe atribuída uma matrícula de transição pelo período de um ano, findo o qual, não havendo reclamações, passa a definitiva.
M: Que modelos actuais poderão ser clássicos daqui a uma vintena de anos?
JF: A primeira condição é a de serem sucessos comerciais, depois têm de ter uma certa mística. A Yamaha R1 tem condições, a Honda CBR 1000 também, bem como a Suzuki GSXR 1000. Depois, poderemos ter nas naked a Speed Triple como eventual candidata. Uma scooter cinquentinha que poderá vingar como clássica é a Target da Yamaha. Não passaram ainda muitos anos por ela, mas já deixou saudades. Dentro das cruiser, eu diria que qualquer Harley-Davidson será um clássico. Aceito que os japoneses façam motos tecnicamente melhores, mais fiáveis, mais bonitas e mais baratas neste segmento, mas a Harley-Davidson é a original, e essa é uma herança que vale muito. O resto será sempre uma imitação.
© Todos os direitos do texto estão reservados para MOTOCICLISMO, uma publicação da MOTORPRESS LISBOA. Contacto para adquirir edições já publicadas: +351 21 415 45 50.
© General Moto, by Hélder Dias da Silva 2008
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