quarta-feira, 1 de outubro de 2008

CHE GUEVARA - DE MOTO, PELOS TRILHOS DENUNCIADORES, INÓSPITOS, FATAIS, DA SUA REVOLUÇÃO. PARTE 2

Nº62 MOTO REPORT Fevereiro 2007
“A pessoa que está agora reorganizando e polindo estas mesmas notas – eu –, não sou mais eu, pelo menos não sou o mesmo que era dantes. (...) A menos que você conheça as paisagens que eu fotografei em meu diário, será obrigado a aceitar a minha versão delas. Agora, deixo-o em minha companhia, do homem que eu era...”
Ernesto Che Guevara

Na edição anterior demos início à história desta longa viagem que Che Guevara fez de moto pela América do Sul. Agora que já conhecemos (ou relembrámos) o enquadramento biográfico de “El Comandante”, e que já tomámos contacto com os primeiros dois mil quilómetros da sua viagem, vamos dotar então de continuidade e epílogo o relato da senda que alterou profundamente a visão que Ernesto Guevara de la Serna tinha da atávica sociedade sul americana. Desta aventura saiu reforçada a sua convicção sobre a inevitabilidade da instauração da igualdade utópica, pilar vital do comunismo que professava. Todavia, nem por breves instantes se fez despontar a rigidez de carácter, no que toca à intolerância e severidade perante os opositores aos seus ideais, que o caracterizou nos anos seguintes. Por coincidência, tudo se passou aos comandos de uma moto – a Norton 500, de 1939 –... pelo menos enquanto ela o permitiu…

A viajem já de si era dura. Mas a empurrar a moto, em vez de conduzi-la, era muito pior. Porém, terá sido desta forma embaraçosa que Ernesto Guevara e Alberto Granado entraram no Chile. Para agravar a situação, Che era frequentemente alvo das graçolas do amigo que, com a sua bravata jovial, o acusava de ser demasiado honesto. Daí que, numa tentativa de se desembaraçar dos problemas e das piadas de Granado, Che Guevara, acometido por um lampejo de audácia, resolve contactar o jornal “El Diário Austral” para, numa entrevista, promover a sua jornada. A questão é que, para obter mais notoriedade e com ela reforçar a importância da viagem, Guevara intitulou-se de médico. Igual condição terá sido também atribuída por ele ao seu amigo. Com imaginação fértil e língua solta, Guevara explicou que ambos tinham tratado mais de 3.000 doentes de lepra por todo continente e que era seu propósito chegarem à colónia de leprosos de San Pablo no Peru, o que, em abono da verdade, até estava correcto. Com a divulgação na imprensa agora conseguida para a sua pretensa condição de leprologistas em missão, estava criado um cartão de visita que lhes abriu algumas portas em momentos bem difíceis, já a roçar, de perto, o limiar da indigência. Foi-lhes possível obter alojamento e alimentação porque as pessoas sentiam-se bem em ajudar tão ilustres viajantes, ainda para mais dedicando-se a uma causa tão nobre como aquela. Até “La Poderosa” beneficiou com tamanha desfaçatez, já que lhe foi prestada assistência técnica a título gratuito. Apesar dos esforços envidados, quando chegaram a Los Angeles, no Chile, a Norton 500 de pouco lhes servia. A mecânica não se compadecia com a utilização extrema a que tinha sido sujeita no últimos dois meses, ao longo de 2.940 quilómetros, por trilhos quase sempre percorridos por gado e pouco mais. Nas oficinas do quartel de bombeiros onde obtiveram guarida chega-lhe a confirmação daquilo que aos poucos se foi tornando evidente: a moto não pode mais ser reparada. É neste ponto que a viajem muda. Perde-se um dos personagens – “La Poderosa” – mas os seus condutores continuam. E note-se, o espírito permanece inalterado. Foi um acidente de percurso, que em nada belisca o projecto outrora iniciado. É por acreditarmos que, mesmo sem moto, Guevara e Granado ainda eram verdadeiros “motociclistas”, imbuídos pela curiosidade da descoberta, que esta crónica continua. A restante viagem segue de comboio, de barco, à boleia em carrinhas de caixa aberta, ou simplesmente a pé. É mesmo a caminhar que percorrem, sob condições extremas, alguns quilómetros do Deserto de Atacama, ainda no Chile. Em Março tomam contacto com a mina Chuquicamata. As hordas de trabalhadores chilenos vítimas de exploração não passam despercebidas a Guevara. Esta situação real era ilustrativa da prepotência com que o regime dominava, controlava e condenava o seu povo à escravidão. Este registo ficou para sempre gravado na memória de Che e Alberto Granado. Outra experiência igualmente marcante terá sido a visita a Machu Picchu, no Peru. A grandiosidade deste local terá suscitado o seguinte comentário de Che Guevara: “Como é possível eu ter saudades de um mundo que não conheci? Como se explica que uma civilização capaz de construir isto seja arrasada para a construção... disto?” O contraponto desta cidade inca era precisamente a realidade anárquica, lamacenta, conspurcada e miserável dos extensos bairros degradados de Lima, capital do Peru. É em Lima que os dois viajantes travam conhecimento com o Dr. Hugo Pesce, manobra preparada antecipadamente por Alberto Granado. A este propósito Che escreveu: “A melhor coisa de Lima foi o Dr. Hugo Pesce, o director do programa de tratamento da lepra do Peru, que Alberto contactara antes de iniciarmos a viagem. Ele alimentou-nos, vestiu-nos, deu-nos dinheiro e algumas boas ideias.” Este encontro retemperou forças, e em breve Ernesto e Alberto estavam, tal como combinado, na colónia para leprosos de San Pablo, ao fim de 10.223 quilómetros de viagem. Aqui dedicaram-se durante duas semanas ao estudo, acompanhamento e auxílio de doentes com lepra. Para um finalista em medicina (Che) e para um bioquímico com alguma experiência (Alberto Granado), esta era uma oportunidade de ouro para aprofundar os conhecimentos na área. De San Pablo saíram de jangada – a “Mambo-Tango” – pelo rio Amazonas, rumo à Colômbia. Mas é na Venezuela, mais precisamente em Caracas, que Alberto e Che terminam definitivamente a viagem. Che regressou de avião a Buenos Aires. Alberto radicou-se na capital da Venezuela. Passariam oito anos antes que os dois se voltassem a encontrar. Em 1960, Alberto foi convidado a ir viver e trabalhar em Cuba. O convite partira do amigo Che, agora comandante Ernesto Che Guevara, um dos mais influentes e inspiradores líderes da revolução cubana, e nessa data presidente do Banco Nacional Cubano. Granado permaneceu em Cuba, onde fundou a escola de Medicina de Santiago. Não consta que tenha feito uso de armas. Aliás, Alberto contestava abertamente a intransigência violenta de Che Guevara para com os opositores de Fidel, mas sempre soube fazê-lo sem beliscar a velha amizade que os unia há já tantos anos. Chegou a ensinar bioquímica na Universidade de Havana e ocupou uma posição no Ministério da Saúde. Vive ainda hoje em Havana, com a mulher Delia, os três filhos e netos.

Cronologia da Viagem
Argentina
Buenos Aires, saída em 4 de Janeiro de 1952;
Villa Gesell, 6 de Janeiro;
Miramar, 13 de Janeiro;
Necochea, 14 de Janeiro;
Bahia Blanca, chegada no dia 16 de Janeiro e partida a 21 do mesmo mês;
Caminho para Choele Choel, 22 de Janeiro;
Choele Choel, 25 de Janeiro;
Piedra del Águila, 29 de Janeiro;
San Martín de los Andes, 31 de Janeiro;
Nahuel Huápi, 8 de Fevereiro;
Bariloche, 11 de Fevereiro;
Chile
Peulla, 14 de Fevereiro;
Temuco, 18 de Fevereiro;
Lautauro, 21 de Fevereiro;
Los Angeles, 27 de Fevereiro;
Santiago do Chile, 1 de Março;
Valparaíso, 7 de Março;
A bordo do San Antonio, 8 a 10 de Março;
Antofogasta, 11 de Março;
Baquedano, 12 de Março;
Chuquicamata, 12 de Março;
Iquique, 20 de Março;
Arica, 22 de Março;
Peru
Tacna, 24 e 25 de Março;
Puno, 26 de Março;
Velejam do lago Titicaca, 27 de Março;
Juliaca, 28 de Março;
Sicuani, 30 de Março;
Cuzco, 31 de Março a 3 de Abril;
Machu Picchu, 4 e 5 de Abril;
Cuzco, 6 e 7 de Abril;
Abancay, 11 de Abril;
Huancarama, 13 de Abril;
Huambo, 14 de Abril;
Huancarama, 15 de Abril;
Andahuaylas, 16 a 19 de Abril;
Ayacucho, 22 de Abril;
La Merced, 25 e 26 de Abril;
Entre Oxapampa e San Ramón, 27 de Abril;
San Ramón, 28 de Abril;
Tarma, 30 de Abril;
Lima, 1 a 17 de Março;
Cerro de Pasco, 19 de Maio;
Pucallpa, 24 de Maio;
A bordo do “La Cenepa”, rio Ucayali, de 25 a 31 de Junho;
Iquitos, 1 a 5 de Junho;
A bordo do “Cisne”, 6 a 7 de Junho;
San Pablo, colónia de leprosos, 8 a 20 de Junho;
A bordo do “Mambo-Tango”, no rio Amazonas, 21 de Junho;
Colômbia
Leticia, 23 de Junho a 1 de Julho;
Em trânsito em Tres Esquinas, 2 de Julho;
Madri, aeroporto militar a 30 km de Bogotá;
“Bogotá” Bogotá, 2 a 10 de Julho;
Cúcuta, 12 e 13 de Julho;
Venezuela
San Cristóbal, 14 de Julho;
Entre Barquisimento e Corona, 16 de Julho;
Caracas, 17 a 26 de Julho.
NOTAS:
Sobre esta aventura recomendamos
um livro e um filme:
- Livro “De Moto Pela América Do Sul”, Ernesto Che Guevara;
- Filme “Diários de Che Guevara”, de Walter Salles, com
produção executiva de Robert Redford.
A MOTO REPORT agradece à Lusomundo todo o apoio concedido para a elaboração deste trabalho.
© Todos os direitos do texto estão reservados para MOTO REPORT, uma publicação da JPJ EDITORA. Contacto para adquirir edições já publicadas: +351 253 215 466.
© General Moto, by Hélder Dias da Silva 2008

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