quarta-feira, 1 de outubro de 2008

CHE GUEVARA - DE MOTO, PELOS TRILHOS DENUNCIADORES, INÓSPITOS, FATAIS, DA SUA REVOLUÇÃO. PARTE 1

Nº61 REVISTA MOTO Janeiro 2007
“Este não é um conto de feitos impressionantes. Mas sim de duas vidas que, por momentos, correram paralelas, tendo idênticas aspirações e sonhos semelhantes. A nossa visão terá sido demasiado estreita, parcial, apressada? As nossas conclusões demasiado rígidas? É possível. Mas esse vagar sem rumo pelos caminhos da nossa grande América transformou-me mais do que julguei.”
Ernesto Che Guevara

Facto curioso este. O homem, que se tornou numa das figuras mais emblemáticas do século XX, foi, pelo menos durante algum tempo, motociclista tal como qualquer um de nós. Das duas grandes viagens que realizou de moto, ficou o despertar da sua consciência para toda uma realidade assente na miséria, na exploração, na ausência de esperança. Era a realidade económica e social da América do Sul nos seus tempos de juventude. Ernesto Guevara de la Serna era já um revolucionário em fase de gestação, só que não o sabia. Com esta viagem haveria de descobri-lo. Hoje, interessa-nos aprofundar a experiência das “duas rodas” que Che Guevara viveu. Que fundamentos deixou para a formação do seu perfil político, de que importância se revestiu para a missão que abraçou, que episódios afinal lhe aconteceram. É essa história, um pouco à margem da figura mítica de “El Comandante”, mas ainda assim muito pessoal e representativa, que a Revista Moto expõe neste trabalho em duas partes.

Em 1950, Che Guevara – então com 22 anos – decide utilizar a sua motocicleta da marca Micrón para percorrer o norte da Argentina. Pouco se sabe acerca deste périplo. Apenas se poderá intuir que o desejo de viajar, de se exceder um pouco mais, não teria ficado totalmente satisfeito. Menos de dois anos volvidos, e a três cadeiras de se formar em Medicina, Guevara junta-se a Alberto Granado, bioquímico, no fulgor das suas 29 primaveras, para juntos cumprirem o grande sonho deste último: explorar o continente latino-americano, que até então só conheciam pelos livros. O objectivo era percorrer 8 mil quilómetros em quatro meses aos comandos de uma Norton 500 de 1939 – “La Poderosa”. Granado pretendia também aprofundar os seus conhecimentos acerca da lepra, daí que a viagem tivesse como objectivo adicional o voluntariado dos dois amigos na colónia de leprosos de San Pablo, no Peru. Esta abnegada experiência revelar-se-ia determinante na formação das suas consciências, pejada que estava, no seu íntimo, do mais elementar desejo de solidariedade. Após as despedidas, e com a moto carregada de bagagem, a dupla vira costas a Buenos Aires. Estávamos a 4 de Janeiro de 1952. A partir deste momento nenhum deles voltaria ao que era. Com 601 quilómetros de viagem rumo ao sul, chegam a Miramar. Este é o ponto de encontro de Guevara com a sua ex-namorada, Chichina, moça recatada, que recebeu na sua casa de família estes dois aventureiros. Lá permaneceram durante seis dias e, segundo consta, terá custado a Guevera apartar-se da sua apaixonada. Ficou porém a promessa de um dia regressar. A 29 de Janeiro, e somados que estavam já mais de 1.800 quilómetros de viagem, passam por Piedra del Aguila. O percurso fazia-se por caminhos e atalhos de terra, lama e pedras. Eram em tudo agressivos, senão mesmo violentos, para “La Poderosa”. Esta não era uma moto para incursões fora de estrada, sobretudo quando de carácter permanente. Seria um excelente veículo para utilização urbana, mas nunca para uma aventura como esta. As mazelas na moto iam-se acumulando. O desconforto era enorme. Mas era o único meio de que dispunham. À medida que a civilização ficava mais distante, a beleza da paisagem, a calma da natureza e o contacto com novas gentes preenchiam a alma destes dois motociclistas. Como os recursos eram escassos, todo o seu dinheiro era usado com parcimónia. Pescavam para comer, pediam ajuda, davam conta da mecânica e improvisavam dormidas sob condições atmosféricas hostis. Alternavam-se na condução (apesar de Granado ser o proprietário da Norton, Guevara também a conduzia, primeiro porque gostava, segundo porque deste modo era mais fácil para ambos) e por nenhum instante se arrependeram da decisão que haviam tomado. Perante as adversidades bastava-lhes a vontade de continuar. Mesmo quando Guevara foi acometido por uma violenta crise de asma, em Bariloche, nos primeiros dias de Fevereiro, a sua determinação foi a de se restabelecer para prosseguir viagem com o amigo. E assim aconteceu. A 18 de Fevereiro cruzam o Lago Frias – fronteira natural com o Chile – e no seu espírito cada momento aparentava dividir-se em dois. Por um lado, as saudades do que ficou para trás. Por outro, o desejo de conhecer – percorrendo – novos territórios. O apelo da estrada parecia cada vez mais intenso. “La Poderosa” é que estava cada vez menos possante. Somavam-se as quedas, as avarias, as intempéries por que passava. O extenso rol de contratempos começava-lhe a ditar uma áspera sentença. No Chile, naquela época do ano, a neve é implacável e depois de se chegar lá não há maneira de evitá-la. Juntos venceram mais este teste, atravessando a Cordilheira dos Andes. A persistência e determinação marcaram novamente a diferença. Na sua condição de forasteiros, suscitavam a inveja e admiração das pessoas com quem se cruzavam. Mas os registos no corpo, na alma e na máquina tornavam-se cada vez mais evidentes. A dada altura começa a ser mais o tempo que gastam a empurrar a moto do que propriamente a conduzi-la. Os ânimos abatem-se e o vil metal já não chega para todas as solicitações. Na próxima parte deste trabalho veremos como Che Guevara e Alberto Granado, colocando a imaginação ao serviço dos seus intentos, agilizaram os meios necessários para continuarem a sua jornada por novos horizontes.

“Hasta la continuación”.

Cronologia Biográfica
1928 – Em 14 de Junho nasce em Rosário, na Argentina, Ernesto Guevara de la Serna. Dados não oficiais indicam 14 de Maio como sendo a verdadeira data do seu nascimento. Tal divergência terá, alegadamente, como justificação a tentativa da família em proteger a mãe de Che – Célia de la Serna – de eventuais escândalos motivados pelo facto de já estar supostamente grávida aquando do casamento com seu pai. Che (termo que na América do Sul significa “amigo” ou “companheiro”) é o mais velho de cinco irmãos.
1930 – Começam as suas primeiras crises agudas de asma. Esta doença crónica acompanhá-lo-ia durante toda a vida.
1933 – A família migra para Alta Gracia.
1934 – Inicia lições particulares em casa.
1937 – Ingressa na escola primária.
1940 – Participa pela primeira vez em torneios de xadrez. Terá sido o seu pai – Ernesto Guevara Lynch – a ensiná-lo a jogar.
1942 – Começa o seu percurso naquela que é hoje considerada para nós a escola secundária.
1943 – A família muda-se novamente, desta vez para Córdoba.
1946 – Termina o seu percurso na escola secundária, obtendo o diploma final no Colégio Nacional Dean Funes.
1947 – A família instala-se em Buenos Aires. Che Guevara é admitido no curso superior de Medicina na Universidade de Buenos Aires.
1950 – Che Guevara atravessa o norte da Argentina de moto.
1951 – Trabalha durante seis meses como enfermeiro a bordo de um petroleiro.
1952 – Juntamente com o bioquímico Alberto Granado, atravessa a América Latina de moto com o fito de trabalhar como voluntário numa colónia de leprosos no Peru, denominada San Pablo.
1953 – Termina os seus estudos superiores em Medicina no dia 12 de Junho. Visita a Bolívia. Viaja para a Guatemala. É aqui que surge o epíteto “Che”, para sempre associado ao seu apelido, assumindo inclusivamente a posição de nome próprio.
1954 – Àrbenz é deposto do governo da Guatemala. Che Guevara chega ao México em Setembro.
1955 – Encontra-se com Fidel Castro a 8 de Julho. A 26 de Julho alista-se no Movimento Revolucionário. O objectivo era o de, através de acções de guerrilha, promover uma revolução que culminasse com a instauração do regime comunista, em contraposição com o fim do regime ditatorial de Batista, o qual contava com o apoio e reconhecimento dos EUA.
1956 – Chega a Cuba.
1957 – Combate na Sierra Maestra. É promovido a comandante da guerrilha.
1958 – Toma a cidade de Santa Clara. Fulgencio Batista abandona Cuba.
1959 – É nomeado presidente do Banco Nacional Cubano. É concomitantemente, o responsável máximo pela prisão La Cabaña Fortress. Neste período, e nos anos seguintes, Che Guevara é autor moral e material de várias execuções de opositores (traidores e espiões) ao regime ditatorial de Fidel. Algumas terão sido simplesmente sumárias. Outras resultavam de
putativos julgamentos assentes em escassos procedimentos jurídicos, cujo desfecho já havia sido previamente determinado. O comunismo não era tido como um meio, mas antes como um fim. 1961 – É designado Ministro das Indústrias de Cuba.
1964 – Decide afastar-se de Cuba. Discursa na ONU. Viaja por África.
1965 – Entrega a sua carta de resignação a Fidel Castro. O seu desejo era o de fomentar a Revolução além-fronteiras. Instala-se no Congo para dar início a operações de guerrilha.
1966 – Vive clandestinamente em Dar-Es Salaam e posteriormente em Praga. Passagem fugaz por Cuba a pedido de Castro. Chega à Bolívia.
1967 – Lidera a guerrilha. É capturado em Quebrada del Yuro. A 9 de Outubro ocorre o seu fuzilamento – pela mão dos militares do exército boliviano – nas instalações de uma escola primária na aldeia de La Higuera. Diversas imagens dos seus restos mortais, obtidas poucas horas após o acontecimento, começam a ser divulgadas pelo mundo inteiro. É enterrado secretamente num local não assinalado com as mãos amputadas para servirem de prova da consumação do seu falecimento. Os restos mortais são encontrados em 1997 e transladados para Cuba.
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© General Moto, by Hélder Dias da Silva 2008

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