Nº52 REVISTA MOTO Abril 2006
Tirei a licença de condução de motociclos em 1999. Curiosamente, fiz o exame poucos dias antes de completar 22 anos. Foi como que se de uma prenda antecipada se tratasse. Na altura, como já tinha a licença para ligeiros, tive de frequentar, salvo o erro, vinte aulas de condução. E muita falta me faziam, pois as únicas experiências com duas rodas resumiam-se às bicicletas, e a uma voltinha nas aceleras do Campo Grande, numa tarde chuvosa de Inverno, e que terminou num valente “espalho” à saída de uma inversão de marcha – daquelas em que, por excesso de confiança, achamos que já nem vale a pena colocar o pezito no chão – tendo por assistência nada mais nada menos que os meus pais. Devia ter os meus 14 anos. Escusado será dizer que me senti profundamente triste e envergonhado.
Regressei a casa com as calças rasgadas, dorido, cabisbaixo, e a partir desse dia nunca mais falei de motos com quase ninguém. Durante muito tempo vinha-me à memória a imagem do meu pai e da minha mãe assustados e aflitos por me verem estatelado no chão. Os meus pais, fruto da sua vivência, sempre encararam as motos como veículos perigosos, embora eu acreditasse que não o eram. Acho até que eles pensavam que a minha experiência mal sucedida tinha acabado por dissuadir-me de voltar a pensar nelas. Só que eu sonhava um dia mais tarde poder comprar uma Custom.
No entanto, guardei esse sonho só para mim, acalentando a esperança de que o momento adequado para realizá-lo chegasse em trote ligeiro. Nesse meio tempo, aproveitava as boleias à pendura nas motos de alguns amigos para ir matando o gostinho (alô Zé “Rodinhas” e Gabi!). Bom, isto tudo, ainda que em tom saudosista, nem foi assim há tanto tempo e serve somente para iniciar o assunto que pretendo trazer hoje a lume: a importância do ensino da condução.
Grosso modo, quinze das minhas lições passaram-se, na íntegra, às voltas para cima e para baixo na rua da escola de condução. Sim, sempre na mesma rua. Ora para cima. Ora para baixo. Mais uns “oitos” à mistura para “ganhar calo”, porque, e passo a citar o que o instrutor me dizia: “Eles pedem sempre isto no exame.” É lógico que nessas aulas nunca consegui ir para além da terceira velocidade, tanto na 125 Rebel das primeiras lições (creio que umas cinco) como mais tarde na CB 500. As restantes foram às voltas no bairro, com o carro da escola atrás de mim. Se buzinasse uma vez eu tinha de ir para esquerda, se buzinasse duas vezes já sabia que era para a direita. O instrutor, um senhor já de alguma idade, a avaliar pela cabeleira integralmente branca, nunca conduziu esta, nem outra mota, pelo menos à minha frente. Aliás, nunca o vi sentado em moto nenhuma. Parece mentira, não é? As suas principais preocupações eram que eu não caísse nos “oitos”, que não galgasse o passeio muito depressa para não danificar a direcção e que apanhasse o jeito para colocar a moto no descanso central no fim de cada aula.
Esta história tem sete anos, e hoje dá-me vontade rir. Claro que se retrocedermos dez ou 15 anos a tendência é para piorar, entre outros factores, porque o número de lições obrigatórias era menor, com a agravante do espírito instituído nunca ter mudado.
Indo direito aos factos, ninguém me ensinou que conduzir em auto-estrada é diferente de conduzir na cidade, que por sua vez também é diferente de conduzir na pacata rua da escola de condução. Sobre como se deve curvar nunca ouvi uma explicação. Vá lá, ensinaram-me a travar. Valeu! A diferença entre conduzir com tempo seco ou com chuva aprendi às minhas custas. Essa foi talvez a minha primeira lição, com 14 anos, no Campo Grande! Quanto à condução nocturna, nem meia hora só para experimentar. Idem para a condução em grupo. Também nunca tive aconselhamento sobre o equipamento adequado para usar quando se anda de moto. Na verdade, nem me explicaram que os pneus dos motociclos também se furam, portanto, andei um certo tempo sem saber o que fazer, se devia usar kit’s anti-furo ou o spray para a câmara-de-ar. Claro está que sobre mecânica elementar o silêncio foi a regra. O pouco que sei aprendi depois, muito por força dos sustos e apertos que vivi com a primeira moto que comprei, uma Virago 535, de 1994.
Nessa altura pensava que tinha tido azar ao escolher aquela escola de condução. Mas aos poucos fui abordando este assunto com mais e mais pessoas e lá fui percebendo que, afinal, o mal parecia estar disseminado um pouco por toda a parte. No fundo, andávamos a pagar aulas de condução para depois fazermos um exame que nos habilitava a obter uma licença que serviria para aprendermos precisamente tudo aquilo que necessitávamos de saber e que o “sistema” não nos tinha conseguido ensinar. É isso: andávamos todos a conduzir de olhos bem fechados. Vistas as coisas desta maneira, parece-me um jogo perverso. Do mais perverso que há, porque o que está em causa, em última instância, é a vida das pessoas. Eu tive a sorte de aprender o que na altura não me tinham ensinado. Mas, e os outros? E aqueles que não tiveram essa oportunidade? É que a inexperiência quando se junta com a ignorância, todos nós o sabemos, pode muito bem ser fatal. Eu diria que é precisamente esta a falácia que tem ajudado Portugal a permanecer no topo da “lista negra” da sinistralidade. Agora vejamos o que tem sido feito de lá para cá. O número de lições aumentou. O custo também e não foi na forma proporcional. Para quem já tenha título válido para condução de ligeiros acresce a obrigatoriedade de ser aprovado num exame de código específico para os veículos de duas rodas. Entre o longo rosário de regras e sinais a estudar haverá também espaço para as noções básicas de mecânica, recomendações sobre o equipamento adequado, entre outras.
Francamente, não sei se estas medidas são suficientes. Nem sei até se serão as necessárias. O tempo o dirá. Para já representam, isso sim, uma mais-valia para o lobby das escolas de condução. Esse é um facto inequívoco. Se, por exemplo, as perguntas do exame específico se detiverem somente nos aspectos acessórios, preterindo o essencial, claro que as aulas serão um meio de preparação dos instruendos para a aprovação no exame e não para a sua formação como bons condutores. De resto, ainda não há a obrigatoriedade de ter lições em período nocturno ou em auto-estrada. O importante a meu ver será o ajuste da aprendizagem às reais condições que todos nós encontramos na estrada, caso contrário, corremos o risco de continuar a fazer do ensino uma espécie de “5.ª dimensão”, anedótica, desarticulada, onde a realidade – mais vezes adversa que favorável – é relegada para segundo plano. Com tal atitude a severidade das estatísticas tende a aumentar.
Para finalizar, é exigível pela sociedade civil a tomada de medidas mais enérgicas junto daqueles que, por dever institucional, haveriam de ser os primeiros a promover a resolução deste problema bem concreto. A maioria das vezes são eles próprios a dar o mote para a tragédia que nos assola. É disso um exemplo o empenho na caça à multa, como se fosse esta a panaceia para acabar de vez com a morte nas estradas. Penso que, lobbys à parte, é forçoso que se olhe para o ensino da condução como uma real aposta na formação dos condutores, dando à famigerada prevenção rodoviária um inequívoco destaque. É também assim que se mudam as estatísticas.
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© General Moto, by Hélder Dias da Silva 2008
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