terça-feira, 26 de agosto de 2008

KALÚ - BATERISTA DOS XUTOS & PONTAPÉS - O RITMO DA LIBERDADE

Nº54 REVISTA MOTO Junho 2006



Kalú faz da liberdade e da aventura o seu lema de vida. Por isso diz que não tem medo de arriscar, de ir um pouco mais além. Mas sempre de uma forma civilizada e responsável. Este companheiro, que como todos sabemos dá o melhor de si na música, há mais de 30 anos que também veste a camisola por uma paixão intensa: a paixão pelas motos. De conversa solta e olhar vivo, o passar dos anos não lhe tolheu a consciência social nem o espírito crítico. Antes pelo contrário. Ele revê-se nos problemas que todos nós vamos enfrentando no dia-a-dia. Foi com este seu jeito simples e desprendido que Kalú nos recebeu na sua residência no concelho de Almada. Sempre alegre e bem disposto, partilhou connosco um pouco da sua vivência motociclística e apresentou-nos o seu amigo e vizinho – o Sr. Hermano – com quem costuma ter longas conversas acerca de Vespas e de como as recuperar. Neste ponto, tanto a 150 cinza do Kalú, como a 125 encarnada do Sr. Hermano, são dois belos exemplos de como se pode recuperar uma moto clássica. E eles sabem disso, tanto que não escondem da objectiva o orgulho e o carinho que nutrem pelas suas beldades.



Revista Moto (RM): Como surgiu o teu gosto pelas motos?
Kalú (K): Na verdade eu sempre gostei. No Restelo, que era o bairro onde eu vivia, toda a gente tinha motos. Eu aprendi a andar numa Honda 50 S, aquela com o escape para cima, devia ter os meus 13 anos. Ainda hoje adorava ter uma moto dessas.
RM: Foi então com essa malta amiga do antigamente que ficaste fã das motos?
K: Sim. Claro que na altura o meu pai odiava que eu tivesse uma moto. Mas pronto... um dia lá aconteceu que eu comprei uma...
RM: Conta-nos lá como foi.
K: Aos 14 anos comprei uma Casal 4 a meias com outro “gajo”. Metemos-lhe uns avanços e um depósito Famel para ficar mais bonita. Só que eu não a podia guardar na minha casa. Tinha de ficar em casa dele. Mas pronto, foi a primeira moto. Mas a Vespa 50 foi a primeira moto que eu comprei com o meu dinheiro e era só minha. Também já tinha tido uma Honda MIG, daquelas que tinham um depósito atrás, mas também era a meias com outro “gajo”. Agora a Vespa foi a minha primeira moto. Custou-me 23 contos. Tinha uns 19 anos. Comprei-a na Piaggio junto à Feira Popular. Era azul-bebé. Aquele azul muito manhoso. Mesmo tipo “azul-cueca”. Eu já tocava, aliás estava prestes a entrar para os Xutos. Nessa altura tinha arranjado um trabalho de cobrador em part-time para comprar peças para a bateria. A Vespa era “baril” para andar em Lisboa a ir às lojas fazer as cobranças. Daí que andava sempre de Vespa de um lado para o outro.
Depois, muitos anos mais tarde, tirei a carta na Virago 535 da minha irmã.



RM: E hoje?
K: Eu escolho as motos muito pela estética. Tenho a Hornet 600, a Vespa 150 e para já mais nada. Hei-de voltar a ter uma Vespa 50 se Deus quiser. É que a Vespa foi a minha grande companheira! Acho que a Hornet tem uma estética linda. É fantástica. Tive em tempos uma Varadero e gostava imenso dela, mas tive de vendê-la porque eu sou pequenino e não consigo andar naquilo. Mas eu adorava a moto. Foi a maior que eu tive, uma "mil", e fazia altas viagens naquilo, realmente fabuloso. Mas lá está, com a Hornet circulo na cidade com muito mais confiança porque já consigo pôr os dois pés no chão.



RM: Desde a primeira moto até agora, houve algum interregno em que tenhas ficado ausente das duas rodas?
K: Tive um período grande quando me casei até comprar esta casa com garagem. Nessa altura a casa não tinha garagem. Vivia num prédio. Aquela coisa de ter a moto na rua, o medo que ma roubassem. Então quando comprei esta casa, e como tinha garagem, recomecei com as motos. Nessa altura comprei uma XT650 em segunda-mão. Depois veio a Varadero. E agora tenho estas.



RM: Qual é a moto dos teus sonhos?
K: Eu não tenho assim nenhuma moto de sonho que ambicionasse muito ter. Por exemplo, gostava imenso de ter a XX da Honda. Acho-a um espectáculo. Só que não é uma moto onde eu me sinta bem a conduzir. A moto tem de conjugar comigo. Depois também gosto das Ducati’s.
São muito bonitas. Mas sei que têm uma mecânica complicada, muito exigente. Por isso, acho que não há assim nenhuma que me faça sonhar acordado.
RM: Quantos quilómetros fazes em média por ano?
K: Eu sou um motard de verão... faço poucos. Uns cinco mil. Há anos em que faço mais. Mas anda por aí. Não faço muito mais que isso.
RM: O que te dizem as concentrações como espectador?
K: Não me revejo muito. Gosto de ir lá para ver os meus amigos. Gosto de apreciar algumas motos. Mas acho que estão a entrar num campo extremamente comercial. Cada vez gosto mais de ir às concentrações mais pequenas, porque são um retorno às origens. São como um encontro de família. Mas sem desprimor nenhum por todas elas, gosto imenso de ir à de Faro, à de Góis e à de Barcelos. Mas parece-me que às tantas são mais um festival onde os “gajos”, por acaso, andam todos de moto.


RM: És seguidor do desporto motorizado?
K: Sou, claro que sou. E sou fã do Rossi. Aqui o meu filho mais novo, o Max, é fã do Biaggi. Deve ser pelo nome... são os dois Max!
RM: Os teus filhos também têm este gosto pelas motos?
K: Tentei convencer o Max mas não consegui. O Vasco, o meu filho do meio que tem 20 anos, é que tem uma DT 50, e provavelmente vai continuar a ter motos. O Fred, o mais velho, não liga absolutamente nada a motos.


RM: Não tens receio de ver o Vasco a conduzir moto?
K: Tenho um bocadinho, mas confio na educação que lhe dei. É uma questão de consciência, e eu sei que ele a tem.
RM: Conseguiste passar o bichinho das motos para o resto da banda?
K: Não. Eles são mais “cools”. O Tim ainda dá uns “toquezinhos” de moto, mas pouco. Mas de resto ninguém mais anda de moto.


RM: Encaras as motos como meios de transporte banais ou como objectos que se mimam e se estimam, aos quais se presta uma espécie de culto?
K: Uma pessoa tem que ter uma relação afectiva com a moto. Eu sempre que passo pelas minhas motos aqui na garagem faço sempre uma festinha no depósito ou qualquer coisa do género. Há sempre um mimo. Um gajo fala com elas. Fazem parte da nossa vida. Não são meros utilitários. Fazem parte integrante de mim.
RM: Gastas algum tempo com manutenção ou reparações?
K: Sim, pequenas reparações. A mecânica hoje é extremamente complexa. Eu não me atrevo a mexer num motor destes (N.R.: apontando para a Hornet). É tudo super compacto. Nas Vespas é diferente. É uma mecânica muito simples. Mexo sem problemas. Agora o resto, prefiro ir
à oficina. A não ser que seja uma pequena reparação, tipo tirar a bateria, arranjar um farolim, mudar uma lâmpada, etc.


RM: Qual foi a melhor experiência que já tiveste de moto?
K: Foi há uns anos durante a tournée em que fiz uma semana sempre a andar de moto, com a Varadero, pelas mais diversas localidades. Parti de Lisboa, fui para o Algarve, passei pela Guarda, Castelo Branco, auto-estrada e muitas estradas nacionais. Nunca tinha andado tanto tempo em cima da moto. Era todos os dias. Chegava à noite, carregava o meu saquinho para o quarto, e pronto. É realmente uma boa memória que tenho. As viagens feitas de moto são realmente muito agradáveis. Eu pelo menos gosto imenso.
RM: E a pior experiência?
K: Foi com a minha Vespa 50, quando caí no carril do eléctrico. Escorreguei ao pé da Assembleia da República. Eu tirava sempre as tampas do motor, porque elas caíam com a trepidação, por isso, para não as perder, ficavam sempre em casa. Quando caí enfiei o pé lá dentro e não o conseguia tirar. Foi mesmo em frente à paragem do eléctrico, e as pessoas estavam todas a rir. Foi uma vergonha.


RM: Quando andas de moto tens alguma música que te bata insistentemente na cabeça? Aquela música em que pensas sempre quando vais na estrada?
K: Acho que muitas vezes vou a compor. Vou a pensar em músicas novas, a cantarolar para mim. Vou entretido nessa parte de composição de coisas de ritmos. Depois quando chego ao sítio do concerto, no “soundcheck”, vou logo experimentar as coisas em que vinha a pensar no caminho.
RM: Quer dizer que sempre que podes vais para os concertos de moto?
K: Pois vou. As viagens na carrinha são porreiras, sempre com muita conversa, mas um gajo anda nisto há montes de anos, por isso se for de moto vou a curtir um bocadinho mais e chego lá ainda com mais adrenalina.


RM: E a tua viagem de sonho? Qual é?
K: Um “coast to coast” nos EUA. Adorava.
RM: Encaras as motos com alternativas válidas à mobilidade nas cidades?
K: Completamente. Eu acho que só as pessoas que nunca se deslocaram de moto é que não percebem isso. Ainda hoje de manhã tive que ir a Lisboa fazer umas compras aqui para o meu estúdio, peguei na moto, pus a mochila às costas e lá fui eu. Não houve trânsito na ponte para ninguém. O puto até ficou aqui em casa sozinho, passados 25 minutos já cá estava outra vez.
RM: O que achas da utilização que se faz das motos nas grandes metrópoles europeias?
K: Eu acho fantástico. A minha mulher foi a Roma e contou-me que aquilo que viu é realmente uma loucura.
RM: Até dá um pouco a ideia de que nós cá somos uns burgessos, não é?
K: Pois somos. Simplesmente não percebemos. Basta passarmos a fronteira e ver. Toda a gente anda com uma acelera na mão. Não é preciso grandes “motões”. Toda a gente nas vilas e nas cidades desloca-se de moto ou motorizada.
RM: O que achas das motos ficarem de fora no dia europeu sem carros?
K: Isso é uma anormalidade. Não dá para perceber. Os políticos não entendem e nem estão para aí virados. Não há força nesse sentido. Para além de que se criou a ideia de que tudo o que é motard é meio bandido. Mas na verdade as motos são uma ferramenta de trabalho. São simplesmente um meio muito mais económico de nos deslocarmos. Pronto tem aquele revés: um “gajo” apanha chuva e frio, mas hoje em dia há equipamentos fabulosos para uma pessoa se proteger. E depois já há as malinhas que levam o capacete e tudo. É impecável. Por exemplo, aquelas BMW novas em que já nem o capacete é preciso. Eu acho esse conceito bestial porque umas das grandes coisas para quem anda de moto é sentir o ventinho na cara. E esta moto permite precisamente isso cumprindo com todos os requisitos de segurança. Apesar de já ter visto muitas, eu nunca andei em nenhuma, mas acho que é o ideal. E por aí será o caminho.


RM: Vejo que não consegues encarar as motos como veículos perigosos, como muita gente pensa que são?
K: Isso é relativo. Depende muito de quem lá vai em cima. Tive imensos amigos que infelizmente faleceram a andar de moto, mas os motivos foram os mais variados. Uns por mero azar, outros por exageros que se cometeram. Mas isso afinal toda a gente faz. Se formos a ver as estatísticas, a maior fatia de acidentados é de certeza absoluta nos automóveis. O pessoal das motos é por tendência muito consciente. Inibem-se de consumir álcool quando sabem que vão conduzir. Claro que quando vão para uma concentração, param a moto e nesses três dias é só para os copos. Mas naquele último dia já não bebem porque sabem que se vão fazer à estrada. Obviamente que há excepções. Não se pode é generalizar. Mas de facto não encaro como um veículo perigoso. Considero é que os automobilistas não têm respeito nenhum pelos motociclistas. Não respeitam nada. Nem as bicicletas. Por exemplo, um ciclista em Lisboa corre perigo de todas as maneiras e feitios por causa da falta de civismo dos automobilistas. Quanto a mim acho que o ideal é ter um carro e uma moto. Do género, a mulher anda com o carro, vai pôr os filhos à escola, e nós vamos à nossa vida na moto. Se apanhar um bocado de chuva paciência. É muito mais fácil um “gajo” deslocar-se. Eu não consigo achar perigoso. Gosto de dar velocidade quando posso dar
para sentir a adrenalina. Mas sou bestialmente consciencioso. Sou respeitador. O máximo possível. Tenho é muito medo dos automobilistas.


RM: Sabes que o risco existe, mas tal não te impede de nada.
K: Sim, é isso. Quando comecei a fazer viagens de moto, fizeram-me montes de avisos por causa das ultrapassagens aos condutores que circulam na faixa da esquerda. Avisaram-me para fazer sinal de luzes e para só ultrapassar quando o veículo sair totalmente para a outra faixa. E tem lógica porque há uns que abrem só um pouco a passagem, lá devem pensar que para a moto chega e sobra, e depois por qualquer motivo encostam à esquerda e acabou. Uma pessoa vai ao rail. Por isso enquanto ele não passar completamente para a faixa de lá eu não o passo por aquele nicho que ele me cedeu. Não passo por meia faixa. Passo pela faixa completa.


RM: E os motociclistas são tratados com o respeito que merecem em outras questões que não as do civismo na estrada?
K: Penso que por vezes nós próprios poderemos ser responsáveis por esse desrespeito. Às vezes há exageros que não se compreendem e daí sermos muitas vezes levados a mal pelo resto da sociedade. Mas como digo, não se pode pegar nas excepções e generalizar. Agora, acho indecente que um veículo que pode transportar cinco pessoas pague o mesmo que um veículo que, por ter só duas rodas, apenas pode levar duas pessoas. O que se trata é do transporte de pessoas e não
da cilindrada deste ou daquele motor. É como haver aqui um barco a atravessar o rio: o custo da viagem recai nos passageiros e não nas especificações do barco. O que importa é a capacidade
e não a potência do motor. Acho uma injustiça do pior. Quer dizer um “gajo” vai de moto daqui ao Porto e paga 37 euros de portagem, que é exactamente o mesmo que paga um carro que leva cinco pessoas.
RM: Onde te parece que reside a causa disto tudo?
K: Os políticos ainda não meteram olhos nisto devidamente. Porque também passa muito por nós motociclistas fazer algum tipo de pressão como aconteceu, por exemplo, com a questão da protecção dos prumos dos rails. No fundo deve-se tudo à falta de atenção e à falta de respeito para com os motociclistas. E se formos ver, acho que o mercado de motociclos aumentou nos últimos anos muito mais, em termos proporcionais, que o mercado de automóveis.
RM: Para ti andar de moto é libertador?
K: Completamente. Sinto-me feliz quando me meto na moto. Fico diferente.
RM: Onde te sentes mais livre, no palco ou na estrada?
K: Essa pergunta é muito traiçoeira (risos). Tenho responsabilidades diferentes em qualquer uma delas. Mas são ambas libertadoras, cada uma à sua maneira. Digamos que se complementam. Adoro tocar e adoro andar de moto.



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© General Moto, by Hélder Dias da Silva 2008

1 comentário:

Jose Miguel disse...

baterista fantastico mesmo... domina aquela bateria todinha...
um dos meus sonhos ainda continua ser ter umas baquetas do KALÚ.

os meus parabens pelo profissionalismo!!! cmps...