quarta-feira, 13 de agosto de 2008

VIAGEM A POMPEIA

Nº927 MOTOJORNAL Setembro 2005


Para quem realmente gosta de viajar de moto, oportunidades como esta constroem-se, saboreiam-se, recordam-se individualmente e, tal como agora, partilham-se, pois é também neste espírito de comunhão que a comunidade dos motociclistas constrói a sua riqueza.

Após um documentário exibido na tv sobre a catástrofe natural que se abateu sobre Pompeia no ano 79 d.c., o qual captou de imediato a nossa atenção, ocorreu-nos fazer deste súbito interesse um pretexto para utilizar-mos as nossas motos – a Yamaha Wild Star XV1600 de 2001 e o trike com motor VolksWagen Beetle 1200 cc de 1978 – numa viagem até esse lendário e sinistro destino.

Como impõe o bom senso, tratámos de fazer uma revisão completa às motos antes da partida. Houve ainda oportunidade para instalar alguns acessórios, ora daqueles que são inquestionavelmente úteis, ora daqueles que servem simplesmente para conferir à nossa montada um look mais personalizado. Tudo ficou operacional. Traçámos o percurso com a ajuda do Microsoft AutoRoute, e programámos todas as paragens. Tínhamos especial interesse, para além do nosso destino final, por Barcelona, e por todo o sul de França, região que, a bem da verdade, confirmámos ser bastante aprazível. Como éramos quatro, e estávamos pouco dispostos a acampar ou a dormir ao relento, a primeira por comodismo, a segunda por firme determinação, tratámos de reservar alguns hotéis de baixo custo onde iríamos pernoitar, pagando em boa parte dos casos, antecipadamente. Contudo, não foi preciso que soassem as 16h30 do primeiro dia de viagem, quinta-feira, para constatarmos não ter sido esta, afinal, uma ideia tão brilhante quanto julgávamos...


O dia 26 de Maio foi o escolhido para a partida. Palmela o lugar. Batiam as 07h30 quando os motores se ligaram, ávidos que estavam pela aventura dos quilómetros. Nessa altura, nós sentíamos no sangue o significado do refrão: “I’m on the road again”.

Passávamos então por Almaraz, que dista uns 200 quilómetros de Madrid, equipados a preceito dos pés à cabeça – o que aliás se recomenda – sob a égide de uns severos quarenta e dois graus, quando o trike ficou subitamente sem luzes, começou a soluçar, disparou uns raters e, acto contínuo, desligou-se. Os sintomas pareciam indiciar que o rectificador de corrente acabava de entregar a alma ao criador, o que mais tarde se veio a confirmar. Ainda era o de origem. Como consequência da anomalia a bateria também já era. Caramba, tinha de ser logo agora – pensávamos nós! Por sorte havia sido rebocado para uma oficina de pessoas qualificadas e honestas, que não se pouparam a esforços, mesmo fora de horas, para identificar e resolver a avaria.

Agora reparem que, com um problema destes logo no primeiro dia, todo o plano da viagem parecia ter ficado irremediavelmente comprometido. Mais, o dinheiro que já tínhamos gasto podia muito bem estar perdido. Para além disso, já era sexta-feira, e nenhuma casa de peças e acessórios, num raio de 200 quilómetros, tinha o rectificador de que precisávamos. Assim sendo, o pior dos cenários obrigava-nos a passar o fim-de-semana inteiro em Almaraz para, na melhor das hipóteses, retomarmos a viagem na segunda-feira. Esta perspectiva não era nada animadora.

Por acaso o Sr. Júlio, o proprietário da oficina (Talleres y Grúas Almarauto, a propósito), lembrou-se que conhecia um electricista que trazia sempre consigo um rectificador de corrente antigo para testes. Experimentou-se a peça, e não é que o trike acordou para vida! Para nosso alívio, acabaram por vender o rectificador de corrente ao Hugo, tendo sido acordado entre eles um preço bastante justo. Quanto não vale nestes casos a compreensão e disponibilidade das pessoas…

Às 13h00 estávamos de novo na estrada, e com uma ânsia desenfreada de devorar quilómetros, tal não tinha sido o susto. Por isso, era forçoso que chegássemos a Barcelona nessa noite. Ou seja: tínhamos de percorrer 800 quilómetros num dia que já começava de tarde. Mas assim foi.

Porém, como um azar nunca vem só, a Wild Star fica sem luzes às 23h00 em plena auto-estrada A-2 (Saragoça - Barcelona), e para cúmulo, era uma noite sem luar. Não se via nada. Acho que nem os carros nos conseguiam ver, a mim e à Ana, ali parados na berma às apalpadelas à moto. Aliás, nem o Hugo e a Sílvia nos viram, pois só deram pela nossa falta uns 30 quilómetros mais à frente. Felizmente, e apesar da escuridão, lá consegui conduzir cautelosamente pela berma até à próxima saída, a cerca de uns 4 quilómetros de distância, e aí, com a luz das portagens, troquei rapidamente o fusível da iluminação geral, e seguimos viagem.

De resto, estes foram os únicos percalços técnicos que a jornada nos reservou. Daí em diante, tudo decorreu sem sobressaltos. Falhas, só mesmo os ataques de sono que me acometiam a seguir ao almoço, e que obrigavam o pessoal a parar para que eu pudesse olhar um pouco para dentro. Descobri que afinal sou capaz de dormir em qualquer sítio, como muito bem documentam as fotos…

A pressão dos pneus e o nível do óleo eram verificados todos os mil quilómetros, e se para a primeira era necessário proceder a ajustes, já para a segunda não foi necessária nenhuma reposição. É notável, sobretudo se tivermos em conta a provecta idade do motor que equipa o trike. Para tal contribuiu, também, a velocidade de cruzeiro adoptada: 100 km/h. Sendo que por vezes abrandávamos até aos 80 km/h, e noutras alturas, perdíamos a cabeça, e dávamos gás até aos 120 km/h. Tudo dependia da condição das estradas e, claro está, da nossa disposição. Já havíamos tido a nossa dose de pressa, agora só queríamos relaxar. Deste modo, os consumos verificados no trike cifraram-se algures entre os 8 e os 10 litros por cada 100 quilómetros. Na Wild Star a média ficou-se pelos 4,5 litros.


OUTROS FACTOS

O percurso adoptado na ida foi: Lisboa, Madrid, Barcelona, Nimes, Marselha, Toulon, Saint-Tropez, Cannes, Nice, Mónaco, Génova, Roma e Vaticano, Nápoles, Pompeia. O regresso fez-se pelo mesmo caminho, porém acrescentámos Florença, Pisa, Saragoça e Mérida. Aproveitámos também para conhecer as cidades que não pudemos visitar na ida (para lá pernoitámos numas e para cá noutras).

Em Espanha é de realçar o facto de podermos atravessar o país de uma ponta à outra sem termos de pagar portagens, e em estradas – as auto-vias – de fazer inveja, por exemplo, à nossa CREL, entre outras.


Já em França as portagens são um facto, porém existe um escalão específico para motociclos. Lá está, deve-se tratar de maneira diferente aquilo que é na verdade diferente. Parece-me que só assim está assegurada a tal igualdade que muitos fazem gala em apregoar, mas que poucos conseguem, no seu dia-a-dia, constatar. As auto-estradas estão bem conservadas, havendo até um esforço por torná-las agradáveis do ponto de vista estético, plantando e cuidando de árvores ou arbustos nas bermas e nos separadores centrais em toda a sua extensão. Em suma: percebe-se para onde vai o dinheiro. Ah, e são um povo muito civilizado a conduzir. Indiscutivelmente. Em França até há o hábito, que há muito se perdeu por cá, de todos os motociclistas se cumprimentarem quando se cruzam. É impecável circular por lá. E o cidadão francês é, por norma, muito gentil.

Quanto à Itália, também há portagens sim senhor, as auto-estradas em muitos casos são piores que as nossas, rolam-se muitíssimos – demasiados – quilómetros em túneis (o relevo é acentuado), o trânsito é intensamente caótico, e os italianos transpõem para a condução toda a barbárie e selvajaria, no fundo, toda a violência e brutalidade tão características dos tempos áureos do Império Romano. Em Itália chega a ser perigoso tentarmos cumprir as regras de trânsito como, por exemplo, parar num sinal STOP, pois corremos o sério risco de, pelo meio de umas quantas buzinadelas, sermos abalroados por alguém que não contava com a nossa paragem. Além disso, na berma chegam a circular três motos lado a lado, mesmo nas “barbas” da polícia.


Curioso também são as, por nós denominadas, faixas mutantes. Isto é, nas estradas existem tantas faixas de rodagem quantos sejam os veículos que lá consigam caber alinhados lado a lado. Quer isto dizer que a sinalização marcada no pavimento não conta para rigorosamente nada. É também frequente vermos motorizadas com 3 ou 4 pessoas, onde o condutor consegue a proeza de conduzir enquanto fuma um cigarro e fala ao telemóvel. Acreditem, só visto! Todavia, e apesar de tudo, a taxa de sinistralidade é menor que a nossa.

Atenção: num restaurante em Itália, supostamente em conta, fizeram-nos pagar 4€ por uma garrafa de água da torneira! E não é que nem pudemos trazer a bem-dita garrafa connosco. “Sodomizaram-me à bruta”, como diria o outro. Se lá forem preparem-se… eles não perdem uma.

Apesar das peripécias, Itália encanta. O seu peso na História da Humanidade é avassalador. Arrisco a dizer que não se nos varrerá da memória a sensação de estar diante do Coliseu de Roma, da Praça de S. Pedro, à beira da cratera do Vesúvio – que não está extinto, somente adormecido – ou das ruínas de Pompeia onde encontramos os moldes dos cadáveres daqueles que por lá tombaram numa impiedosa agonia (asfixiados e soterrados pelas partículas piroclásticas) e que, estando bem à frente dos nossos olhos, nos compelem ao silêncio em sinal de respeito.
Entre outras coisas, esta viagem deu para comprovar que o uso de veículos de duas rodas é um hábito enraizado em todas as grandes cidades. Mais que isso, ele é promovido pelo próprio Estado, que abdica de uma boa parte das suas receitas fiscais aquando da aquisição deste tipo de veículos, cria mais facilidades para a obtenção do título de condução e, como em Florença, determina uma enorme quantidade de estacionamentos apropriados para motos, alguns até que disponibilizam carregadores para motociclos e ciclomotores equipados com motores eléctricos. A população aderiu a esta cultura, e todos saíram a ganhar, desde a indústria do sector, ao ambiente, passando pelo próprio Estado, e por todos aqueles que vivem e se deslocam nas cidades. Pena é que por cá as coisas sejam bem diferentes. Mas cada um de nós tem a sua quota-parte de responsabilidade, quanto mais não seja, por não contestarmos, por não nos insurgirmos contra a incompetência e a imoralidade de toda uma classe política que é por nós legitimada e, ainda por cima, também por nós é sustentada.
Por princípio, num Estado de Direito, ou se preferirem, numa nação civilizada, essa classe de “ilustres personalidades” deveria exercer correctamente o poder que lhe foi concedido, com o fito de obter justiça, segurança, e de melhorar a nossa condição socio-económica e cultural. A realidade é que, ao longo das últimas décadas, a classe política fez por cair em descrédito. Está sistematicamente orientada para os seus próprios interesses, tanto os pessoais, como os das mais variadas corporações a que os seus membros pertencem, ou com as quais se relacionam. Na prática: estamos à beira do colapso num clima de total impunidade.

Em relação a custos, a viagem rondou os 2700€ por cada duas pessoas mais a moto. Desta verba, grosso modo, 1000€ foram para a alimentação, 1000€ para alojamento, e o restante para combustível, portagens, e despesas diversas.

DE NOVO POR CÁ

Bom, foi óptimo regressar a Portugal e perceber que o IVA tinha sido aumentado para 21 por cento. Para comemorar até parámos na Adega do Isaías em Estremoz, e refastelámos o estômago e a alma com os belos petiscos que por lá se servem. Afinal as saudades da “comidinha de casa” já se faziam sentir.



Posto isto, e após os 5813 quilómetros que nos levaram de ida e volta a Pompeia, o balanço é absolutamente positivo. É uma experiência a repetir, ainda que a um outro destino, não só pelo gozo que temos ao nos deslocarmos de moto, mas também pelas vantagens que se reflectem na carteira. Só deste modo nos foi possível passar 20 dias a viajar, conhecer 18 cidades, estando sempre nas nossas mãos o rumo que haveríamos de seguir, ao invés de despendermos o mesmo valor por um pacote turístico de 8 dias com vista para o mar e para as paredes do quarto.

Para terminar, a sugestão não podia ser outra: utilizem as vossas motas para viajar, partam à descoberta e partilhem as experiências. Como diz o “nosso” Jorge Palma: “Para quem ama a liberdade o importante é nunca parar”. Acima de tudo: divirtam-se!



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© General Moto, by Hélder Dias da Silva 2008

2 comentários:

Ana disse...

Ai saudade, saudade...

Sílvia disse...

Esta viagem será pra sempre recordada!